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quarta-feira, 6 de abril de 2011

Último voo...

TAP: último voo

In Expresso - 05-03-2011

Miguel Sousa Tavares

Mais de trinta anos passados sobre a tormenta das nacionalizações e posteriores reprivatizações, o assunto não está ainda, como devia, encerrado. Ao longo dos anos, e ao sabor das necessidades de tesouraria ou das pressões das clientelas e boys candidatos aos lugares, os governos vão privatizando o que ainda está disponível e sempre com o critério que o que dá prejuízo jamais é privatizado; mas o que dá ou pode facilmente dar lucro é privatizado. Depois, consumada a privatização, há, invariavelmente, duas consequências: as novas empresas privadas vivem por regra em monopólio protegido pelo Estado — o que tem sido uma fonte de inesgotáveis fortunas acumuladas sem risco algum; e os consumidores saem sempre a perder. Que ganhámos nós, consumidores, nós, país, com a privatização, total ou parcial, da EDP, da PT, da Brisa, da Galp? Nada, absolutamente nada: passámos a pagar mais por pior serviço, enquanto vamos constatando os lucros fabulosos (e quase sempre com impostos de favor) que os novos donos recebem por explorar mal o que outrora era público. A ruína do país tem como contraponto, não sei se necessário, o fantástico negócio que as privatizações tardias têm sido para os seus beneficiários.

Mais uma vez apertado financeiramente, o Governo prepara-se para ‘voltar ao mercado’, oferecendo mais umas jóias da coroa, das poucas que restam e a preço de ocasião. Quais? Ora, não é com certeza a RTP, a REFER, a CP ou o Metro do Porto, essas empresas de défices crónicos por quem ninguém suspira. Também não é com certeza o BPN — esse caso notável de nacionalização fora de tempo e que confirma a regra de nacionalizar os prejuízos privados e privatizar os lucros públicos. Agora, na agenda de ‘esquerda’ do Governo PS, perfilam-se como candidatas ao portefólio do comendador Amorim ou da família Dos Santos, os CTT, as Águas de Portugal, a ANA e a TAP — o que resta apetecível. Todas, após privatização, passarão inevitavelmente a seguir a regra geral: pior serviço, custos mais caros para os consumidores, mercado protegido pelo Estado, lucros fantásticos para os accionistas e ‘planeamento fiscal inteligente’, isto é, impostos ridículos. Não tenham dúvidas: é assim a regra do jogo. Resta que a sua alienação a favor das clientelas empresariais do regime implica uma perda de soberania económica e estratégica que (como já vimos com a EDP, a Galp ou a PT), mais tarde ou mais cedo o país há-de pagar igualmente. Vejamos o caso da TAP.

Qualquer idiota sabe e percebe que a TAP é muito mais do que uma simples companhia aérea e mais até do que uma companhia aérea “de bandeira”. A TAP (excluindo o pequeno caso particular da SATA), é a única companhia aérea de um pequeno país continental que tem, todavia, o seu território disperso por mais dois arquipélagos e uma relação de presença muito forte e que deseja manter com uma série de países que foram suas colónias e outros onde se alberga uma vasta diáspora que queremos continue próxima. Ou seja, é um instrumento fundamental da nossa política externa e não apenas de representação. Muitíssimo mais importante e decisivo do que inúmeras Embaixadas que mantemos, delegações do Comércio Externo ou os ridículos Serviços de Informação (cuja utilidade ficou bem patente nos recentemente conhecidos relatórios sobre o Magrebe, onde se garantia que nenhuma revolta era previsível).
O país deve à TAP e aos seus trabalhadores inúmeros serviços cuja importância foi determinante para o nome de Portugal. A começar pelo repatriamento em massa e em condições operacionais dificílimas de centenas de milhares de portugueses evacuados das colónias em 1975. A continuar pelas ligações com países como Moçambique ou Cabo Verde ou (ainda hoje) com a Guiné-Bissau e S. Tomé e Príncipe, que lhes permitiram, pura e simplesmente, existir no mapa e sobreviver no mundo, e onde a chegada do avião da TAP foi ou ainda é a chegada do mundo, pela mão de Portugal. Muito mais do que toda a retórica, acordos ortográficos e declarações de amizade, devemos à TAP o melhor da imagem que Portugal hoje tem no Brasil, onde os setenta voos semanais para uma série de destinos diferentes representam também uma ligação fundamental entre o Brasil e a Europa e entre as comunidades emigrantes de ambos os países, além de um contributo determinante para o turismo de Lisboa, por exemplo. E devemos ao espírito de empresa dos seus trabalhadores e aos esforços da sua administração o facto de termos uma companhia aérea que é muito melhor do que o país que lhe dá bandeira (se alguém tem dúvidas, experimente voar na Ibéria ou na Alitália ou em qualquer companhia americana, para saber o que é uma má companhia aérea). Aliás, só esse espírito de empresa, tão raro entre nós, permitiu à TAP sobreviver a todos as malfeitorias que o accionista Estado contra ela cometeu até há dez anos, quando enfim se rendeu finalmente a uma gestão profissional e foi chamar quem o sabia fazer.

Vale a pena recapitular. A primeira malfeitoria foi fazer da TAP, durante mais de vinte anos, um albergue para os boys do bloco central, que a administraram como brinquedo seu, juntando a leviandade à incompetência: ainda me lembro de um presidente da TAP cuja grande obra foi inventar destinos sem qualquer viabilidade económica, para cujos voos inaugurais enchia o avião de convidados amigos e a “Olá-Semanário” para fazer uma reportagem ‘social’. Depois, houve que manter preços políticos e créditos incobráveis a favor dos PALOP e dos seus governantes, que também achavam que a TAP era coisa sua. A seguir, veio o ministro João Cravinho, que concebeu o funesto projecto de fundir a TAP com a Swissair (uma das piores companhias aéreas do mundo), plano que, embora ainda tenha chegado a causar danos, abortou porque, felizmente e entretanto, a Swissair faliu. Depois, obrigaram-na a comprar a Portugália (que, tendo nascido para concorrer com a TAP em destinos próximos, falhou e também estava falida). Depois, obrigaram-na a comprar também esse desastre da Groundforce espanhola a quem tinham entregado todo o handling do aeroporto de Lisboa e Faro (e cujos resultados ainda hoje impedem que a TAP seja confortavelmente lucrativa). E, finalmente, e ao contrário do que se passa no mundo inteiro, a TAP tem vindo a ser progressivamente empurrada para as traseiras e tratada como hóspede indesejável no aeroporto de Lisboa, por outra empresa pública, a ANA, e em benefício das low-cost (mas não é inocente: trata-se de justificar a necessidade do novo aeroporto de Lisboa com o argumento de que a TAP já não tem espaço na Portela). Ironicamente, a história da mostra-nos que de cada vez que gestores privados ditos “de sucesso” ou empresas privadas se imiscuíram no seu caminho, aqueles falharam e a TAP sobreviveu — mas foi chamada a pagar os custos do desastroso ‘sucesso’ privado alheio.

Ou seja: temos aqui uma empresa pública que exerce um papel insubstituível ao serviço do país (e que, obviamente, não será continuado pela Lan Chile ou pela Catar Airways, e, menos ainda, pela Lufthansa ou Ibéria). Temos uma empresa que funciona bem e prestigia o país, que ganhou, por mérito próprio, um papel de liderança absoluta no Atlântico Sul e um papel importante em África, que é rentável enquanto apenas companhia aérea, que é bem gerida, que dá trabalho a 8000 pessoas e paga 200 milhões de euros de impostos por ano. E o Governo quer privatizá-la, perante o silêncio geral (excepção feita a Jerónimo de Sousa). Apenas porque precisa de dinheiro e só não vende o pai e a mãe porque os não tem.

Entendam-me bem: eu nada percebo de transporte aéreo e talvez tenha criado uma espécie de relação amorosa com a
TAP difícil de explicar. Mas nestes tempos de depressão instalada, em que não parece haver qualquer sinal de esperança no horizonte, vejo a venda em saldo da TAP como um golpe final, tremendo, no meu orgulho de português. Talvez haja razões que justifiquem que o Governo diga que a venda da TAP é “prioritária”. Mas, por uma questão de respeito pelos que a fizeram e mantiveram a voar, por todos nós, que tantos impostos pagámos para a viabilizar, e por uma questão de amor-próprio — que é quase só o que nos resta — convinha que o Governo explicasse essa ‘prioridade’ e que alguém mais se preocupasse com o assunto.




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